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Considerações sobre o filme Pobres Criaturas [contém spoilers]

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Por: Ludmila Carvalho
Publicado: 28/02/2024

Acabei de assistir o filme Pobres Criaturas e queria comentar um pouco sobre algumas observações e reflexões que fui fazendo ao longo da história.
Deixo claro que tentei ao máximo evitar ler ou ouvir qualquer comentário ou crítica à obra antes de vê-la, numa tentativa de tirar minhas próprias conclusões.
Mas não consegui evitar saber da comparação com a obra clássica Frankenstein E também de alguns questionamentos sobre seu posicionamento feminista, ou não.
Dito isso, vou trazer minhas considerações e ao final apontar o que penso sobre esses pontos.

De modo geral, pude enxergar muito da psicanálise freudiana ao longo da história, mas com alguma crítica à e sua proposta de compreensão do desenvolvimento humano baseado na sexualidade. Há também muitas referências à filosofia, num paralelo do desenvolvimento individual humano com o desenvolvimento do pensamento da humanidade ao longo da história.
Também consegui ver críticas sutis as religiões, em especial, mas não somente, o cristianismo.

Podemos ver que no filme Bella Baxter, a protagonista, apesar de ter o corpo de uma mulher adulta tem o cérebro de uma criança, de modo que vamos acompanhando seu desenvolvimento à medida que vai avançando pelas fases do desenvolvimento psicossexual descrito por Freud:

1- fase oral (enchendo a boca de comida e cuspindo, por exemplo)
2- fase anal (no descontrole dos esfíncteres, quando urina no chão)
3- a fase fálico (descoberta do prazer nas genitais)

Cada um desses estágios é caracterizado, segundo a teoria Freudiana, por uma zona erógena, devido à concentração da libido, e é nessas fases que a parte inicial do filme se concentra.
Fica bem claro o filme o momento em que a personagem atinge a terceira fase na cena em que descobre o prazer que pode provocar a si mesma tocando seu próprio corpo.

A partir daí, parece existir uma leitura por parte das pessoas (homens principalmente) que a circundam de que sua sexualidade está desabrochando.
No entanto, vale ressaltar que essa fase corresponde à idade de 3 e 6 anos, e assim, o que vemos é uma criança sendo abusada por um homem: Duncan Wedderburn, o advogado que passa a explorar a sexualidade de Bella, supostamente já esteja amadurecida, devido à sua curiosidade pelos órgãos genitais, seus e dos outros.
Nesse ponto identifiquei uma crítica à teoria do desenvolvimento psicossexual infantil, que por muitas vezes foi mal compreendida como se a sexualidade da criança pudesse ser comparada à da pessoa adulta, o que em vários contextos foi utilizada para justificar exploração sexual e o abuso infantil.
Curioso que assim que entra na fase fálica e conhece seu abusador, Bella sai de casa com ele na tentativa de aplacar suas sede de conhecer o mundo. Também vemos aí a sua curiosidade infantil quase socrática sobre o mundo e as coisas, funcionando de modo muito próximo ao maiêutico, com perguntas simples.
Não por acaso, imagino, o primeiro destino de Bella e seu abusador é Lisboa. Sim, porque a cidade foi a grande capital e ponto de partida das grandes navegações. Dali partiram inúmeras naus e caravelas rumo ao desconhecido, para explorar novos mundos. E, sabemos que os resultados destas aventuras grandiosas foram a escravidão e dizimação de diversos povos e culturas, em nome de Deus, e para a expansão de um novo sistema econômico que surgia ali, o capitalismo.

E vejo aqui o paralelo com a condição de Bella, que ao mesmo tempo que quer explorar e conhecer o mundo, também é explorada, mantida como em cativeiro.
Tal condição fica mais evidente no momento em que é colocada numa caixa, e quando pode sair descobre que está em um navio rumo à Grécia. Vale lembrarmos de que tal destino não é por acaso, já que a Grécia é tida como o berço do conhecimento ociedental.
No que se refere a sequência do desenvolvimento psicossexual da personagem, podemos observa-la neste momento adentrando adentrando o:

4- Período de latência (suspensão da libido)

Interessante podemos identificar essa fase de Bella justamente quando está num navio, ou seja, como se estivesse com suas possibilidades de exploração do mundo limitadas, e então acaba voltando-se para outros interesses.
Esse período de latência pode ir dos 6 anos até a puberdade e reconhecemos na personagem a diminuição de sua libido e seu interesse pelo sexo, à medida que aumenta sua capacidade de abstração e reflexão sobre o mundo e seu interesse pelos livros e pela filosofia, e a vemos elaborar questionamentos mais complexos sobre a vida e sobre as coisas. Há portanto um desenvolvimento do conhecimento filosófico.

Nesse ponto Bella conhece uma mulher mais velha já sem vida sexual muito ativa, novamente representando a ausência de libido. Curioso que a mulher lhe a apresenta a Goethe, autor do livro “Os sofrimentos do jovem Werther” que desencadeou uma onda de suicídios na Europa por conta da história de suicídio do protagonista. Curioso porque a mulher que existia antes de Bella, naquele corpo, foi uma suicida.
Na verdade Bella só vive, porque sua mãe se suicidou. Aqui novamente podemos identidificar construtos freudianos, no caso a pulsão de via em contraste com a pulsão de morte.
No navio a protagonista também conhece um homem, Harry, que é negro e parece ser o primeiro homem que se aproxima dela sem interesse romântico/sexual.
Com ele, Bella aprende sobre o cinismo, tanto na forma mais prática de se comportar e se questionar sobre o mundo e as coisas, como citação mais clássica do filósofo Diógenes: saia da frente do meu Sol!.
Harry também lhe apresenta o mundo como ele é e ali ela vê a realidade das coisas e começa a se compadecer das dores e sofrimento dos seres humanos. Tal momento se passa quando desembarcam em Alexandria, e do alto do do farol, já em ruínas, ela observa o povo miserável, doente e morrendo.
Vale mencionar que Alexandria é lembrada por sua imensa biblioteca, que, na antiguidade abrangia conhecimento de todo o mundo. Pude observar nesse ponto o início de uma fase idealista da personagem, na qual ela começa a imaginar a possibilidade de um mundo melhor e sem miséria, bem como sentir um impulso de poder contribuir para poder melhorar esse mundo. Ou seja, Bella está ali vivendo o auge de sua adolescência, e dando passos importantes na sua jornada da heroína.
Vejo aí portanto um paralelo com a história de Buda que era conhecido como o príncipe Sidarta vivia em um castelo, num universo tão protegido e sem nenhuma possibilidade de conhecer a dor e o sofrimento. Porém um dia, ao sair escondido do castelo, vê um velho doente e nesse momento depara-se com a dor, o sofrimento e a finitude da vida.

Buda então deseja conhecer o mundo, e abandona seu castelo tão protegido assim como Bella, desde que sai da casa de seu criador, e que nesse momento da história se depara o sofrimento humano, e tal como Buda, também deseja poder aplacar as dores do mundo.
O príncipe Sidarta passa a viver uma vida de ascetismo ou seja de pobreza extrema, e vemos Bella também fazendo esse movimento ao tentar doar todo o dinheiro aos pobres.
Não à toa a próxima fase se passa em Paris, berço da Revolução Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem, e da filosofia Iluminista. Ao viver na pobreza em Paris, Bella descobre outros aspectos da vida e do mundo e aí se inicia seu conhecimento sobre o socialismo e o materialismo dialético e a compreensão sobre as relações de poder e o domínio sobre os meios de produção.
Então, ao entender que os corpos são explorados na lógica Capitalista ela passa a explorar o seu próprio corpo, que, apesar de ser sua ferramenta de trabalho, é também a possibilidade de que seja dona do seu próprio meio de produção.
Nesse período, tal como Buda quando deixa de lado o ascetismo, é que se dá a “iluminação “ da protagonista. Esse momento é bem demarcado no filme quando Bella descobre o prazer nos sexo com uma outra mulher, Toinette. Curiosamente, ela é a segunda personagem negra da história e a mesma pessoa que lhe apresenta aos ideais socialistas.

E aqui, parece retornar a crítica ao desenvolvimento psicossexual Freudiano, pois, nesse retorno do interesse de Bella pelo sexo podemos identificar a sua última etapa:

5 - a fase genital (maturidade, busca por uma atividade sexual consensual e com algum nível de envolvimento)

Assim, a passagem da protagonista da adolescência para a fase adulta é demarcada pela grande exploração de seu corpo e de sua sexualidade através do exercício da prostituição. Porém, sua grande descoberta, seu momento de “iluminação” reside no sexo com outra mulher e no orgasmo clitoriano, ou seja, sem penetração.
Essa me parece uma crítica importante, pois Freud postulava que o orgasmo clitoriano era infantil, sendo que e a maturidade e o desenvolvimento pleno da mulher se manifestaria por orgasmos vaginais (com penetração), o oposto do que parece ocorrer com Bella.
Bella, agora iluminada e mulher adulta ela passa a ser dona de sua própria história?
A questão do orgasmo clitoriano aparece novamente quando ela decide mudar novamente de vida, ou melhor, voltar para sua vida anterior, ao marido violenteo, controlador e castrador, que quer recorrer à extirpação do clitóris como controle de sua sexualidade.

Também Aqui vemos a crítica ao controle do corpo feminino Que se submete a heterossexualidade compulsória e a maternidade. Um corpo que serve apenas ao homem e a à função reprodutiva.

Seu marido/ditador literalmente leva um tiro no pé ao tentar controla-la, pois ela foge assumindo o controle de seu destino mais uma vez. Volta portanto a seu lugar de origem, para seu criador, para o seu companheiro e seu destino traçado desde o início, por fim, tomando o lugar de seu pai/criador.
Mas esse final me causou um desconforto, e não sei se o compreendi muito bem. Identifico uma possível virada feminista onde mulheres de fases diferentes da vida (a governanta, a menina-bebê, Bella e sua amante) dominam um espaço anteriormente masculino, em que homens se tornam subservientes, ou mesmo subjugados como animais. Mas ainda me parece um pouco vazia essa análise.

Será que talvez, após ter passeado por tantos períodos da história e por tantos conhecimentos da humanidade, ao final nos deparamos com a filosofia pós moderna, diante um de um vazio de significado e de subjetividades?

Bella é mãe e filha no mesmo corpo, animadas pelo Espírito Santo dos experimentos do Dr. Godwin. Aos olhos de seu criador, Bella Baxter é um experimento, que me lembra mais a ilha do Dr. Moureau. Bella também é Adão e Eva ao mesmo tempo. É ela criada por Deus (Dr. God) e ao mesmo tempo se auto expulsa do paraíso-sua casa quando prova do fruto da árvore do conhecimento (se atentem à cena em que ela se masturba com uma maçã).
Bella é também Lilith, a primeira mulher criada para ser companheira de Adão, mas que não aceita se submeter a ele, nem durante o sexo.
Ela é Maria mãe de Jesus, a imaculada, e ao mesmo tempo Maria Madalena, a prostituta.

Para o estudante e seu futuro marido Max McCandles ela é um fascinante objeto de estudo, que me remete ao Enigma de Kasper Hauser.
Para o advogado Wedderburn, ela é Lolita, uma criança cuja sexualidade ele está sedento por explorar e por quem acaba ficando obcecado. Num dado momento Bella é encaixotada por ele, no ápice de sua tentativa de controle sobre ela, que me remeteu ao Encaixotando Helena.
Seu nome é Bella, que me remete à Bela Lugosi, ator que interpretou muitas vezes Drácula no cinema, mas também Frankenstein. Porém seu nome anterior era Victoria, que me remete ao personagem Victor Frankenstein, criador do monstro que ficou conhecido com o seu nome.
O pai/criador de Bella é o Dr. Godwin. Que para além do uso de seu nome para a comparação a Deus (God), também me remete ao nome do filósofo William Godwin, casado com a escritora Feminista Mary Wollstonecraft, ambos pais de Mary Shelley, criadora da obra Frankenstein.

E, na minha visão se encerram aí as comparações.

Bella Baxter é uma criatura bizarra, sim. Porém uma criatura amada, desejada, admirada. Um ideal de mulher que só pode ter saído da cabeça de um homem, que supõe que a beleza somada à admiração e desejo masculino nos satisfaça.
O monstro criado por Victor Frankenstein, por sua vez, era rejeitado, solitário, sentia incompreensão e um enorme vazio que por vezes o faziam ter atitudes drásticas e até mesmo trágicas, sentindo uma grande culpa.
O monstro em questão podia ser um homem, sim, mas que saiu da cabeça de uma mulher, que expressou ali toda a angústia, solidão e culpa do que é o ser feminino.

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